(e uns outros textos)

O Cobrador - Rubem Fonseca

NA PORTA da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.

Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muito. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.

Só rindo. Esses caras são engraçados.

Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente.

Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso.

São quatrocentos cruzeiros.

Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.

Não tem não o quê?

Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.

Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Ar­rebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.

Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!

Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta.


* * *

A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita. Rua Marechal Floriano, casa de armas, farmácia, banco, china, retratista, Light, vacina, médico, Ducal, gente aos montes. De manhã não se consegue andar na direção da Central, a multidão vem rolando como uma enorme lagarta ocupando toda a calçada.


* * *

Me irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha. Ontem de noite eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para vender na Cruzada, e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar tênis num daqueles clubes bacanas que tem por ali tocou a buzina. Eu vinha distraído pois estava pensando na Magnum, quando a buzina tocou. Vi que o carro vinha devagar e fiquei parado na frente.

Como é?, ele gritou.

Era de noite e não tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e atirei no pára-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito. Ele arrancou com o carro, para me pegar ou fugir, ou as duas coisas. Pulei pro lado, o carro passou, os pneus sibilando no asfalto. Parou logo adiante. Fui até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha.

Girou a cabeça que estava encostada no banco, olhos muito arregalados, pretos, e o branco em volta era azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro. E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse — você vai morrer, ô cara, quer que eu te dê o tiro de misericórdia?

Não, não, ele disse com esforço, por favor.

Vi da janela de um edifício um sujeito me observando. Se escondeu quando olhei. Devia ter ligado para a polícia.

Saí andando calmamente, voltei para a Cruzada. Tinha sido muito bom estraçalhar o pára-brisa do Mercedes. Devia ter dado um tiro na capota e um tiro em cada porta, o lanterneiro ia ter que rebolar.


* * *

O cara da Magnum já tinha voltado. Cadê as trinta mi­lhas? Põe aqui nesta mãozinha que nunca viu palmatória, ele disse. A mão dele era branca, lisinha, mas a minha estava cheia de cicatrizes, meu corpo todo tem cicatrizes, até meu pau está cheio de cicatrizes.

Também quero comprar um rádio, eu disse pro muambeiro. Enquanto ele ia buscar o rádio eu examinei melhor a Magnum. Ajeitadinha, e também carregada. Com o silenciador parecia um canhão.

O muambeiro voltou carregando um rádio de pilha.

É japonês, ele disse.

Liga para eu ouvir o som.

Ele ligou.

Mais alto, eu pedi.

Ele aumentou o volume.

Puf. Acho que ele morreu logo no primeiro tiro. Dei mais dois tiros só para ouvir puf, puf.


* * *

Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.

Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar.

Meu arsenal está quase completo: tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38, duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facão. Com o facão vou cortar a cabeça de alguém num golpe só. Vi no cinema, num desses países asiáticos, ainda no tempo dos ingleses­ um ritual que consistia em cortar a cabeça de um animal, creio que um búfalo, num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitadores eram verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue esguichando.


* * *

Na casa de uma mulher que me apanhou na rua. Coroa, diz que estuda no colégio noturno. Já passei por isso, meu colégio foi o mais noturno de todos os colégios noturnos do mundo, tão ruim que já não existe mais, foi demolido. Até a rua onde ele ficava foi demolida. Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./

Ela corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela não entende. Continuo: Sabia sambar e cair na paixão/ e rolar pelo chão/ apenas por pouco tempo./ Do suor do seu rosto nada fora construído./ Queria morrer com ela,/ mas isso foi outro dia,/ ainda outro dia./ No cinema Íris, na rua da Carioca/ o Fantasma da Ópera/ Um sujeito de preto,/ pasta preta, o rosto escondido,/ na mão um lenço branco imaculado,/ tocava punheta nos espectadores;/ na mesma época, em Copacabana,/ um outro/ que nem apelido tinha,/ bebia o mijo dos mictórios dos cinemas/ e o rosto dele era verde e inesquecível./ A História é feita de gente morta/ e o futuro de gente que vai morrer./ Você pensa que ela vai sofrer?/ Ela é forte; resistirá./ Resistiria também; se­ fosse fraca./ Agora você, não sei./ Você fingiu tanto tempo, deu socos e gritos, embusteou/ Você está cansado,/ você. acabou,/ não sei o que te mantém vivo./

Ela não entendia de poesia. Estava solo comigo e que­ria fingir indiferença, dava bocejos exasperados. A farsanteza das mulheres.

Tenho medo de você, ela acabou confessando.

Essa fodida não me deve nada, pensei, mora com sacrifício num quarto e sala, os olhos dela já estão empapuçados de beber porcarias e ler a vida das grã-finas na revista Vogue.

Quer que te mate?, perguntei enquanto bebíamos uísque ordinário.

Quero que você me foda, ela riu ansiosa, na dúvida. Acabar com ela? Eu nunca havia esganado ninguém com as próprias mãos. Não tem muito estilo, nem drama, esga­nar-se alguém, parece briga de rua. Mesmo assim eu tinha vontade de esganar alguém, mas não uma infeliz daquelas. Para um zé-ninguém, só tiro na nuca?

Tenho pensado nisso, ultimamente. Ela tinha tirado a roupa: peitos murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com nódulos de celulite, gelatina estragada com pedaços de fruta podre.

Estou toda arrepiada, ela disse.

Deitei sobre ela. Me agarrou pelo pescoço, sua boca e língua na minha boca, uma vagina viscosa, quente e olorosa.

Fodemos.

Ela agora está dormindo.

Sou justo.


* * *

Leio os jornais. A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. O bacana do Mercedes com roupa de tenista morreu no Miguel Couto e os jornais dizem que foi assaltado pelo bandido Boca Larga. Só rindo.

Faço um poema denominado Infância ou Novos Cheiros de Buceta com U: Eis-me de novo/ ouvindo os Beatles/ na Rádio Mundial/ às nove horas da noite/ num quarto/ que poderia ser/ e era/ de um santo mortificado/ Não havia pecado/ e não sei por que me lepravam/ por ser inocente/ ou burro/ De qualquer forma/ o chão estava sempre ali/ para fazer mergulhos./ Quando não se tem dinheiro/ é bom ter músculos/ e ódio./

Leio os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo. Quero viver muito para ter tempo de matar todos eles.


* * *

Da rua vejo a festa na Vieira Souto, as mulheres de vestido longo, os homens de roupas negras. Ando lentamente, de um lado para o outro na calçada, não quero despertar suspeitas e o facão por dentro da calça, amarrado na perna, não me deixa andar direito. Pareço um aleijado, me sinto um aleijado. Um casal de meia-idade passa por mim e me olha com pena; eu também sinto pena de mim, manco e sinto dor na perna.

Da calçada vejo os garçons servindo champanha francesa. Essa gente gosta de champanha francesa, vestidos franceses, língua francesa.

Estava ali desde as nove horas, quando passara em frente, todo municiado, entregue à sorte e ao azar, e a festa surgira.

As vagas em frente ao apartamento foram logo ocupa­das e os carros dos visitantes passaram a estacionar nas es­curas ruas laterais. Um deles me interessou muito, um carro vermelho e nele um homem e uma mulher, jovens e elegantes. Caminharam para o edifício sem trocar uma palavra, ele ajeitando a gravata borboleta e ela o vestido e o cabelo. Prepararam-se para uma entrada triunfal mas da calçada vejo que a chegada deles foi, como a dos outros, recebida com desinteresse. As pessoas se enfeitam no cabeleireiro, no costureiro, no massagista e só o espelho lhes dá, nas festas, a atenção que esperam. Vi a mulher no seu vestido azul esvoaçante e murmurei — vou te dar a atenção que você merece, não foi à toa que você vestiu a sua melhor calcinha e foi tantas vezes à costureira e passou tantos cremes na pele e botou perfume tão caro.

Foram os últimos a sair. Não andavam com a mesma firmeza e discutiam irritados, vozes pastosas, enroladas.

Cheguei perto deles na hora em que o homem abria a porta do carro. Eu vinha mancando e ele apenas me deu um olhar de avaliação rápido e viu um aleijado inofensivo de baixo preço.

Encostei o revólver nas costas dele.

Faça o que mando senão mato os dois, eu disse.

Para entrar de perna dura no estreito banquinho de trás não foi fácil. Fiquei meio deitado, o revólver apontado para a cabeça dele. Mandei que seguisse para a Barra da Tijuca. Tirava o facão de dentro da perna quando ele disse, leva o dinheiro e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel Nacional. Só rindo. Ele já estava sóbrio e queria tomar um último uisquinho enquanto dava queixa à polícia pelo telefone. Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma festa. Seguimos pelo Recreio dos Bandeirantes até chegar a uma praia deserta. Saltamos. Deixei acesos os faróis.

Nós não Lhe fizemos nada, ele disse.

Não fizeram? Só rindo. Senti o ódio inundando os meus ouvidos, minhas mãos, minha boca, meu corpo todo, um gosto de vinagre e lágrima.

Ela está grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho.

Olhei a barriga da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei o revólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina.

O homem assistiu a tudo sem dizer, uma palavra, a carteira de dinheiro na mão estendida. Peguei a carteira da mão dele e joguei pro ar e quando ela veio caindo dei-lhe um bico; de canhota, jogando a carteira longe.

Amarrei as mãos dele atrás das costas com uma corda que eu levava. Depois amarrei os pés.

Ajoelha, eu disse.

Ele ajoelhou.

Os faróis do carro iluminavam o seu corpo. Ajoelhei-me ao seu lado, tirei a gravata borboleta, dobrei o colarinho, deixando seu pescoço à mostra.

Curva a cabeça, mandei.

Ele curvou. Levantei alto o facão, seguro nas duas mãos; vi as estrelas no céu, a noite imensa, o firmamento infinito e desci o facão, estrela de aço, com toda minha força, bem no meio do pescoço dele.

A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o pára­lama do carro. O pescoço ficou numa boa posição. Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez, enquanto o facão fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! a cabeça saiu rolando pela areia. Ergui alto o alfanje e recitei: Salve o Cobrador! Dei um grito alto que não era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto derrete.


* * *

Uma caixa preta debaixo do braço. Falo com a língua presa que sou o bombeiro que vai fazer o serviço no aparta­mento duscenthos e um. O porteiro acha graça na minha língua presa e me manda subir. Começo do último andar. Sou o bombeiro (língua normal agora) vim fazer o serviço. Pela abertura, dois olhos: ninguém chamou bombeiro não. Desço para o sétimo, a mesma coisa. Só vou ter sorte no primeiro andar.

A empregada me abriu a porta e gritou lá para dentro, é o bombeiro. Surgiu uma moça de camisola, um vidro de esmalte de unhas na mão, bonita, uns vinte e cinco anos.

Deve haver um engano, ela disse, nós não precisamos de bombeiro.

Tirei o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senão mato as duas. Tem mais alguém em casa? O marido estava trabalhando e o menino no colégio. Amarrei a empregada, fechei sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro quarto.

Tira a roupa.

Não vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida. Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro. Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, a buceta era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas. Mesmo assim não foi fácil, sentia o meu pau esfolando. Deu um gemido quando enfiei o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua bunda. Meu pau começou a ficar lubrifi­cado pelos sucos da sua vagina, agora morna e viscosa.

Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do umbigo dela.

Vê se não abre mais a porta pro bombeiro, eu disse, antes de ir embora.


***

Saio do sobrado da rua Visconde de Maranguape. Uma panela em cada molar cheio de cera do Dr. Lustosa/ mastigar com os dentes da frente/ punheta pra foto de revista/ livros roubados./ Vou para a praia.

Duas mulheres estão conversando na areia; uma tem o corpo queimado de sol, um lenço na cabeça; a outra é clara, deve ir pouco à praia; as duas têm o corpo muito bonito; a bunda da clara é a bunda mais bonita entre todas que já vi.

Sento perto, e fico olhando. Elas percebem meu interesse e começam logo a se mexer, dizer coisas com o corpo, fazer movimentos aliciantes com os rabos. Na praia somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores pois não temos aquela barriga grande e a bunda mole dos para­sitas. Eu quero aquela mulher branca! Ela inclusive está interessada em mim, me lança olhares. Elas riem, riem, dentantes. Se despedem e a branca vai andando na direção de Ipanema, a água molhando os seus pés. Me aproximo e vou andando junto, sem saber o que dizer

Sou uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida, e o cabelo dela é fino e tratado, o seu tórax é esbelto, os seios pequenos, as coxas são sólidas e redondas e musculosas e a bunda é feita de dois hemisférios rijos. Corpo de bailarina.
Você estuda balé?

Estudei, ela diz. Sorri para mim. Como é que alguém pode ter boca tão bonita? Tenho vontade de lamber dente por dente da sua boca. Você mora por aqui?, ela pergunta. Moro, minto. Ela me mostra um prédio na praia, todo de mármore.


* * *

De volta à rua Visconde de Maranguape. Faço hora para ir na casa da moça branca. Chama-se Ana. Gosto de Ana, palindrômico. Afio o facão com uma pedra especial, o pescoço daquele janota era muito duro. Os jornais abriram muito espaço para a morte do casal que eu justicei na Barra. A moça era filha de um desses putos que enriquecem em Sergipe ou Piauí, roubando os paus-de-araras, e depois vêm para o Rio, e os filhos de cabeça chata já não têm mais sotaque, pintam o cabelo de louro e dizem que são descendentes de holandeses.

Os colunistas sociais estavam consternados. Os granfas que eu despachei estavam com viagem marcada para Paris. Não há mais segurança nas ruas, dizia a manchete de um jornal. Só rindo. Joguei uma cueca pro alto e tentei cortá-la com o facão, como o Saladino fazia (com um lenço de seda) no cinema.

Não se fazem mais cimitarras como antigamente/ Eu sou uma hecatombe/ Não foi nem Deus nem o Diabo/ Que me fez um vingador/ Fui eu mesmo/ Eu sou o Homem Pênis/ Eu sou o Cobrador./

Vou no quarto onde Dona Clotilde está deitada há três anos. Dona Clotilde é dona do sobrado.

Quer que eu passe o escovão na sala?, pergunto.

Não meu filho, só queria que você me desse a injeção de trinevral antes de sair.

Fervo a seringa, preparo a injeção. A bunda de Dona Clotilde é seca como uma folha velha e amassada de papel de arroz.

Você caiu do céu, meu filho, foi Deus que te mandou, ela diz.

Dona Clotilde não tem nada, podia levantar e ir comprar coisas no supermercado. A doença dela está na cabeça. E depois de três anos deitada, só se levanta para fazer pipi e cocô, ela não deve mesmo ter forças.

Qualquer dia dou-lhe um tiro na nuca.


* * *

Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me dá vontade de dançar — dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chão, meu corpo se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco.

Quem quiser mandar em mim pode querer, mas vai morrer. Estou querendo muito matar um figurão desses que mostram na televisão a sua cara paternal de velhaco bem-sucedido, uma pessoa de sangue engrossado por caviares e champãs. Come caviar/ teu dia vai chegar./ Estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. A moça do prédio de mármore? Entro e ela está me esperando, sentada na sala, quieta, imóvel, o cabelo muito preto, o rosto branco, parece uma fotografia.

Vamos sair, eu digo para ela. Ela me pergunta se estou de carro. Digo que não tenho carro. Ela tem. Descemos pelo elevador de serviço e saímos na garagem, entramos num Puma conversível.

Depois de algum tempo pergunto se posso dirigir e trocamos de lugar. Petrópolis está bem?, pergunto. Subimos a serra sem dizer uma palavra, ela me olhando. Quando chega­mos a Petrópolis ela pede que eu pare num restaurante. Digo que não tenho dinheiro nem fome, mas ela tem as duas coisas, come vorazmente como se a qualquer momento fossem levar o prato embora. Na mesa ao lado um grupo de jovens bebendo e falando alto, jovens executivos subindo na sexta-­feira e bebendo antes de encontrar a madame toda enfeitada para jogar biriba ou falar da vida alheia enquanto traçam queijos e vinhos. Odeio executivos. Ela acaba de comer. E agora? Agora vamos voltar, eu digo, e descemos a serra, eu dirigindo como um raio, ela me olhando. Minha vida não tem sentido, já pensei em me matar, ela diz. Paro na rua Visconde de Maranguape. É aqui que você mora? Saio sem dizer nada. Ela sai atrás: vou te ver de novo? Entro e enquanto vou subindo as escadas ouço o barulho do carro partindo.


* * *

Top Executive Club. Você merece o melhor relax, feito de carinho e compreensão. Nossas massagistas são completas. Elegância e discrição.

Fica quieto senão chumbo a sua barriga executiva.

Ele tem o ar petulante e ao mesmo tempo ordinário do ambicioso ascendente egresso do interior, deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena, católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando na PUC, a mulher transando decoração de interiores e sócia de butique.

Como é executivo, a massagista te tocou punheta ou chupou teu pau?

Você é homem, sabe como é, entende essas coisas, ele disse. Papo de executivo com chofer de táxi ou ascensorista. De Botucatu para a Diretoria, acha que já enfrentou todas as situações de crise.

Não sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador.

Sou o Cobrador!, grito.

Ele começa a ficar da cor da roupa. Pensa que sou maluco e maluco ele ainda não enfrentou no seu maldito escritório refrigerado.

Vamos para sua casa, eu digo.

Eu não moro aqui no Rio, moro em São Paulo, ele diz. Perdeu a coragem, mas não a esperteza. E o carro?, pergunto. Carro, que carro? Este carro, com a chapa do Rio? Tenho mulher e três filhos, ele desconversa. Que é isso? Uma desculpa, senha, habeas-corpus, salvo-conduto? Mando parar o carro. Puf, puf, puf, um tiro para cada filho, no peito. O da mulher na cabeça, puf.


* * *

Para esquecer a moça que mora no edifício de mármore vou jogar futebol no aterro. Três horas seguidas, minhas per­nas todas escalavradas das porradas que levei, o dedão do pé direito inchado, talvez quebrado. Sento suado ao lado do campo, junto de um crioulo lendo O Dia. A manchete me interessa, peço o jornal emprestado, o cara diz se tu quer ler o jornal por que não compra? Não me chateio, o crioulo tem poucos dentes, dois ou três, tortos e escuros. Digo, tá, não vamos brigar por isso. Compro dois cachorros-quentes e duas cocas e dou metade pra ele e ele me dá o jornal. A manchete diz: Polícia à procura do louco da Magnum. Devolvo o jornal pro crioulo. Ele não aceita, ri para mim enquanto mastiga com os dentes da frente, ou melhor, com as gengivas da frente que de tanto uso estão afiadas como navalhas. Notícia do jornal: Um grupo de grã-finos da zona sul em grandes preparativos para o tradicional Baile de Natal — Primeiro Grito de Carnaval. O baile começa no dia vinte e quatro e termina no dia primeiro do Ano Novo; vêm fazendeiros da Argentina, herdeiros da Alemanha, artistas americanos, executivos japoneses, o parasitismo internacional. O Natal virou mesmo uma festa. Bebida, folia, orgia, vadiagem.

O Primeiro Grito de Carnaval. Só rindo. Esses caras são engraçados.

Um maluco pulou da ponte Rio-Niterói e boiou doze horas até que uma lancha do Salvamar o encontrou. Não pegou nem resfriado.

Um incêndio num asilo matou quarenta velhos, as famílias celebraram.


* * *

Acabo de dar a injeção de trinevral em Dona Clotilde quando tocam a campainha. Nunca tocam a campainha do sobrado. Eu faço as compras, arrumo a casa. Dona Clotilde não tem parentes. Olho da sacada. É Ana Palindrômica.

Conversamos na rua. Você está fugindo de mim?, ela pergunta. Mais ou menos, digo. Vou com ela pro sobrado. Dona Clotilde, estou com uma moça aqui, posso levar pro quarto? Meu filho, a casa é sua, faça o que quiser, só quero ver a moça.

Ficamos em pé ao lado da cama. Dona Clotilde olha para Ana um tempo enorme. Seus olhos se enchem de lágrimas. Eu rezava todas as noites, ela soluça, todas as noites para você encontrar uma moça como essa. Ela ergue os braços magros cobertos de finas pelancas para o alto, junta as mãos e diz, oh meu Deus, como vos agradeço!

Estamos no meu quarto, em pé, sobrancelha com sobrancelha, como no poema, e tiro a roupa dela e ela a minha e o corpo dela é tão lindo que sinto um aperto na garganta, lágrimas no meu rosto, olhos ardendo, minhas mãos tremem e agora estamos deitados, um no outro, entrançados, gemendo, e mais, e mais, sem parar, ela grita; a boca aberta, os dentes brancos como de um elefante jovem, ai, ai, adoro a tua obsessão!, ela grita, água e sal e porra jorram de nossos corpos, sem parar.

Agora, muito tempo depois, deitados olhando um para o outro hipnotizados até que anoitece e nossos rostos brilham no escuro e o perfume do corpo dela traspassa as paredes do quarto.

Ana acordou primeiro do que eu e a luz está acesa. Você só tem livros de poesia? E estas armas todas, pra quê? Ela pega a Magnum no armário, carne branca e aço negro, aponta pra mim. Sento na cama.

Quer atirar? pode atirar, a velha não vai ouvir. Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo suspendo o cano até a altura da minha testa. Aqui não dói.

Você já matou alguém? Ana aponta a arma pra minha testa.

Já.

Foi bom?

Foi.

Como?

Um alívio.

Como nós dois na cama?

Não, não, outra coisa. O outro lado disso.

Eu não tenho medo de você, Ana diz.

Nem eu de você. Eu te amo.

Conversamos até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra Dona Clotilde e levo pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha entre goles.


* * *

Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mor­tos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo parque do Flamengo olhando as árvores; os troncos, a raiz, as folhas, a sombra, escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de chão de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles olhas­sem para os lados. Já não perco meu tempo com sonhos.

O mundo inteiro saberá quem é você, quem somos nós, diz Ana.

Notícia: O Governador vai se fantasiar de Papai Noel. Notícia: menos festejos e mais meditação, vamos purificar o coração. Notícia: Não faltará cerveja. Não faltarão perus. Notícia: Os festejos natalinos causarão este ano mais vítimas de trânsito e de agressões do que nos anos anteriores. Policia e hospitais preparam-se para as comemorações de Natal. O Cardeal na televisão: a festa de Natal está deturpada, o seu sentido não é este, essa história de Pagai Noel é uma invenção infeliz. O Cardeal afirma que Papai Noel é um palhaço fictício.

Véspera de Natal é um bom dia para essa gente pagar o que deve, diz Ana. O Papai Noel do baile eu mesmo quero matar com o facão, digo.

Leio para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, para os jornais. Nada de sair matando a esmo, sem objetivo definido. Eu não sabia o que queria, não buscava um resultado prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim mudaremos o mundo. É a síntese do nosso manifesto.

Ponho as armas numa mala. Ana atira tão bem quanto eu, só não sabe manejar o facão, mas essa arma agora é obsoleta. Damos até logo à Dona Clotilde. Botamos a mala no carro. Vamos ao Baile de Natal. Não faltará cerveja, nem perus. Nem sangue. Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro.


Texto extraído do livro "O Cobrador", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979, pág. 165.

O barril de Amontilado - Edgar Allan Poe

Suportei o melhor que pude as mil e uma injúrias de Fortunato; mas quando começou a entrar pelo insulto, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza da minha índole, não ireis supor que me limitei a ameaçar. Acabaria por vingar-me; isto era ponto definitivamente assente, e a própria determinação com que o decidi afastava toda e qualquer idéia de risco. Devia não só castigar, mas castigar ficando impune. Um agravo não é vingado quando a vingança surpreende o vingador. E fica igualmente por vingar quando o vingador não consegue fazer-se reconhecer como tal àquele que o ofendeu.

Deve compreender-se que nem por palavras, nem por atos, dei motivos a Fortunato para duvidar da minha afeição. Continuei, como era meu desejo, a rir-me para ele, que não compreendia que o meu sorriso resultava
agora da idéia da sua imolação.

Tinha um ponto fraco, este Fortunato sendo embora, sob outros aspectos, homem digno de respeito e mesmo de receio. Orgulhava-se da sua qualidade de entendido em vinhos. Poucos italianos possuem o verdadeiro espírito de virtuosidade. Na sua maior parte, o seu entusiasmo é adaptado às circunstâncias de tempo e de oportunidade para ludibriar milionários britânicos e austríacos. Em pintura e pedras preciosas, Fortunato, à semelhança dos seus concidadãos, era um charlatão, mas na questão de vinhos era entendido. Neste aspecto eu não diferia substancialmente dele: eu próprio era entendido em vinhos de reserva italianos, e comprava-os em grandes quantidades sempre que podia.

Foi ao escurecer, numa tarde de grande loucura pelo carnaval, que encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessivo calor, pois bebera demais. Trajava de bufão; uma roupa justa e parcialmente às tiras, levando na cabeça um barrete cônico com guizos. Fiquei tão contente de o ver que julguei que nunca mais parava de lhe apertar a mão.

— Meu caro Fortunato — disse eu —, ainda bem que o encontro. Você tem hoje uma aparência notável! Saiba que recebi um barril de um vinho que passa por ser
Amontilado; mas tenho cá as minhas dúvidas.

— O quê? — disse ele —
Amontilado? Um barril? Impossível! E em pleno Carnaval!

— Tenho as minhas dúvidas — respondi —, e estupidamente paguei o verdadeiro preço do
Amontilado sem ter consultado o meu amigo. Não o consegui encontrar e tinha receio de perder o negócio!

Amontilado!

— Tenho as minhas dúvidas — insisti.

Amontilado!

— E tenho de resolvê-las.

Amontilado!

— Como vejo que está ocupado, vou procurar Luchesi. Se existe alguém com espírito crítico, é ele. Ele me dirá.

— Luchesi não distingue
Amontilado de xerez.

— No entanto, há muito idiota que acha que o seu gosto desafia o do meu amigo.

— Venha, vamos lá.

— Aonde?

— À sua cave.

— Não, meu amigo, não exigiria tanto da sua bondade. Vejo que tem compromissos. Luchesi...

— Não tenho compromisso nenhum, vamos.

— Não, meu amigo. Não será o compromisso, mas aquele frio terrível que bem sei que o aflige. A cave é insuportavelmente úmida. Está coberta de salitre.

— Mesmo assim, vamos lá. O frio não é nada.
Amontilado! Você foi ludibriado. E quanto a Luchesi, não distingue xerez de Amontilado.

Assim falando, Fortunato pegou-me pelo braço. Depois de pôr uma máscara de seda preta e de envergar um
roquelaire cingido ao corpo, tive que suportar-lhe a pressa que levava a caminho do meu palacete. Não havia criados em casa; tinham desaparecido todos para festejar aquela quadra. Eu tinha-lhes dito que não voltaria senão de manhã e dera-lhes ordens explícitas para se não afastarem de casa. Ordens essas que foram o suficiente, disso estava eu certo, para assegurar o rápido desaparecimento de todos eles, mal voltara costas.

Retirei das arandelas dois archotes e, dando um a Fortunato, conduzi-o através de diversos compartimentos até à entrada das caves. Desci uma grande escada em caracol e pedi-lhe que se acautelasse enquanto me seguia. Quando chegamos ao fim da descida encontrávamo-nos ambos sobre o chão úmido das catacumbas dos Montresores. O andar do meu amigo era irregular e os guizos da capa tilintavam quando se movia.

— O barril? — perguntou.

— Está lá mais para diante — disse eu —, mas veja a teia branca de aranha que cintila nas paredes da cave.

Voltou-se para mim e pousou nos meus olhos duas órbitas enevoadas pelos fumos da intoxicação.

— Salitre? — perguntou por fim.

— Sim — respondi. — Há quanto tempo tem essa tosse?

— Hâg! hâg! hâg! Hâg! hâg! hâg!

O meu amigo ficou sem poder responder-me durante bastante tempo.

— Não é nada — acabou por dizer.

— Venha — disse-lhe com decisão. — Retrocedamos, a sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado; você é feliz como eu já o fui em tempos. Você é um homem cuja falta se sentiria. Quanto a mim, não importa. Retrocedamos. Ainda é capaz de adoecer e não quero assumir tal responsabilidade. Além disso, ah Luchesi...

— Basta! — replicou. — A tosse não é nada, não me vai matar. Não vou morrer por causa da tosse.

— Pois decerto que não, pois decerto — respondi —; não é minha intenção alarmá-lo desnecessariamente, mas deve usar de cautela. Um gole deste
médoc defender-nos-á da umidade. Quebrei o gargalo de uma garrafa que retirei de uma longa fila de muitas outras iguais que jaziam no bolor.

— Beba — disse, apresentando-lhe o vinho.

Levou-o aos lábios, olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e abanou a cabeça significativamente, enquanto os guizos tilintavam.

— Bebo — disse — aos mortos que repousam à nossa volta.

— E eu para que você viva muito.

Novamente me tomou pelo braço e prosseguimos.

— Estas catacumbas são enormes — disse ele.

— Os Montresores — respondi — constituíam uma família grande e numerosa.

— Não me lembro do vosso brasão.

— Um enorme pé humano, de ouro, em campo azul; o pé esmaga uma serpente rampante cujas presas estão ferradas no calcanhar.

— E a divisa?

Nemo me impune lacessit.

— Ótimo! — disse ele.

O vinho brilhava no seu olhar e os guizos tilintavam. A minha própria disposição melhorara com o
médoc. Tinha passado por entre paredes de ossos empilhados, à mistura com pipas e barris, nos mais recônditos escaninhos das catacumbas. Parei novamente e desta vez fiz questão de segurar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.

— Salitre! — disse eu —, veja como aumenta. Parece musgo nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio. As gotas de umidade escorrem por entre os ossos. Venha, vamo-nos embora que já é muito tarde. A sua tosse...

— Não faz mal — retorquiu —, continuaremos. Antes, porém, mais um trago de
médoc. Abri e passei-lhe uma garrafa de De Grâve. Despejou-a de um trago. Os olhos brilharam-lhe com um fulgor feroz. Riu e atirou a garrafa ao ar, com uns gestos que não entendi. Olhei-o surpreso. Repetiu o movimento grotesco.

— Não compreende?

— Não, não compreendo — respondi.

— Então não pertence à irmandade.

— Como?

— Quero eu dizer que não pertence à Maçonaria.

— Sim, sim — disse —, sim, pertenço.

— Você? Impossível! Um maçom?

— Sim, um maçom — respondi.

— Um sinal — disse ele.

— Aqui o tem — retorqui, mostrando uma colher de pedreiro que retirei das dobras do meu
roquelaire.

— Está brincando — exclamou, recuando alguns passos. — Mas vamos lá, ao
Amontilado.

— Assim seja — disse eu, tornando a colocar a ferramenta sob a capa e tornando a oferecer-lhe o meu braço. Apoiou-se nele pesadamente. Continuamos o nosso caminho à procura do
Amontilado. Passamos por uma série de arcos baixos, descemos, atravessamos outros, descemos novamente e chegamos a uma profunda cripta na qual a rarefação do ar fazia com que os archotes reluzissem em vez de arderem em chama. No ponto mais afastado da cripta havia uma outra cripta menos espaçosa. As paredes tinham sido forradas com despojos humanos, empilhados até à abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três das paredes desta cripta interior estavam ainda ornamentadas desta maneira. Na quarta parede, os ossos tinham sido derrubados e jaziam promiscuamente no solo, formando num ponto um montículo de certo vulto. Nessa parede assim exposta pela remoção dos ossos, percebia-se um recesso ainda mais recôndito, com um metro e vinte centímetros de fundo, noventa centímetros de largo e um metro e oitenta a dois metros e dez de alto. Parecia não ter sido construído com qualquer fim específico, constituindo apenas o intervalo entre dois dos colossais suportes do teto das catacumbas, e era limitado, ao fundo, por uma das paredes circundantes em granito sólido. Foi em vão que Fortunato, levantando o seu tíbio archote, tentou sondar a profundidade do recesso. A enfraquecida luz não nos permitia ver-lhe o fim.

— Continue — disse eu —, o
Amontilado está aí dentro. Quanto a Luchesi...

— É um ignorante — interrompeu o meu amigo, enquanto avançava, vacilante, seguido por mim. Num instante atingira o extremo do nicho, e vendo que não podia continuar por causa da rocha, ficou estupidamente desorientado. Um momento mais e tinha-o agrilhoado ao granito. Havia na parede dois grampos de ferro, distantes um do outro, na horizontal, cerca de sessenta centímetros. De um deles pendia uma pequena corrente e do outro um cadeado. Lançar-lhe a corrente em volta da cintura e fechá-la foi obra de poucos segundos. Ficara demasiado surpreendido para oferecer resistência. Retirei a chave e recuei.

— Passe a mão pela parede — disse eu. — Não deixará de sentir o salitre. Na realidade está muito úmido. Mais uma vez lhe suplico que nos retiremos. Não lhe convém? Nesse caso, tenho realmente de o deixar. Mas, primeiro, quero prestar-lhe todas as pequenas atenções ao meu alcance.

— O
Amontilado! — berrou o meu amigo, que se não recompusera ainda do espanto em que se encontrava.

— É verdade — respondi. — O
Amontilado.

Ao dizer isto, pus-me a procurar com todo o afã por entre as pilhas de ossos de que já falei. Atirando com eles para o lado, pus a descoberto uma quantidade de pedras e argamassa. Com estes materiais e com a ajuda da minha trolha, comecei a entaipar com todo o vigor a entrada do nicho. Mal tinha colocado a primeira fiada de pedras quando descobri que a embriaguez de Fortunato tinha em grande parte desaparecido. A este respeito, o primeiro indício foi-me dado por um longo gemido vindo da profundidade do recesso. Não era o gemido de um ébrio. Sucedeu-se um prolongado e obstinado silêncio. Pus a segunda fiada de pedras, a terceira e a quarta. Em seguida ouvi as vibrações furiosas da corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para me ser possível ouvi-lo com maior satisfação, suspendi a minha tarefa e sentei-me no montículo de ossos. Quando finalmente cessou o tilintar, retomei a trolha e completei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima fiadas. A parede estava agora quase ao nível do meu peito. Parei novamente e, elevando o archote acima do parapeito, fiz incidir alguns raios de luz sobre a figura que lá estava dentro.

Uma sucessão de gritos altos e agudos, irrompendo de súbito da garganta da figura agrilhoada, quase me atirou violentamente para trás. Por um breve momento hesitei, tremi. Desembainhei o florete e com ele comecei a tatear o recesso, mas bastou pensar um momento para voltar a sentir-me seguro. Coloquei a mão sobre a sólida construção das catacumbas e fiquei satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede. Respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os como um eco, juntei-me a eles, ultrapassei-os em volume e força. Depois disto, o outro sossegou.

Era agora meia-noite e a minha tarefa aproximava-se do fim. Completara já a oitava, a nona e a décima fidas. Tinha acabado uma porção da décima primeira e última; faltava apenas colocar e fixar uma pequena pedra. Lutava com o seu peso; coloquei-a parcialmente na posição que lhe cabia. Soltou-se então do nicho um riso abafado que me arrepiou os cabelos. Seguiu-se uma voz triste que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. Dizia aquela voz:

— Ah! ah! ah! eh! eh! boa piada, de fato, excelente gracejo. Havemos de rir bastante acerca disto, lá no palácio, eh! eh! eh! acerca do nosso vinho, eh! eh! eh!

— O
Amontilado? — disse eu.

— Eh! eh! eh! eh! eh! eh! sim, o
Amontilado. Mas não estará a fazer-se tarde? Não estarão à nossa espera no palácio lady Fortunato e os convidados? Vamo-nos embora.

— Sim — disse eu —, vamo-nos.

Pelo amor de Deus, Montresor!

— Sim — disse eu —, pelo amor de Deus!

Em vão esperei uma resposta a estas palavras. Comecei a ficar impaciente. Chamei em voz alta:

— Fortunato!

Não obtive resposta. Chamei novamente:

— Fortunato!

Continuei sem resposta. Meti um archote pela pequena abertura e deixei-o cair lá dentro. Em resposta ouvi apenas um tilintar de guizos. Senti o coração oprimido, dada a forte umidade das catacumbas. Apressei-me a pôr fim à minha tarefa. Forcei a última pedra no buraco, e fixei-a com a argamassa. De encontro a esta nova parede tornei a colocar a velha muralha de ossos. Durante meio século nenhum mortal os perturbou.
In pace requiescat!