(e uns outros textos)

A Causa Secreta - Machado de Assis

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.

Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.

- Já aí vem um, acudiu alguém.

Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.

- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.

- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.

- Não, nunca o vi. Quem é?

- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.

- Não sei quem é.

Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.

Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.

- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.

Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.

O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.

Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.

Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.

- Sabe que estou casado?

- Não sabia.

- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.

- Domingo?

- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.

Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.

- Não, respondeu a moça.

- Vai ouvir uma ação bonita.

- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.

Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.

" Singular homem!" pensou Garcia.

Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

- Valeu? perguntou Fortunato.

- Valeu o quê?

- Vamos fundar uma casa de saúde?

- Não valeu nada; estou brincando.

- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.

Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.

Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.

- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.

No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.

- Mas a senhora mesma...

Maria Luísa acudiu, sorrindo:

- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...

Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.

- Deixe ver o pulso.

- Não tenho nada.

Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.

Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.

- Que é? perguntou-lhe.

- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

- Mate-o logo! disse-lhe.

- Já vai.

E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.

Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".

Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

- Fracalhona!

E voltando-se para o médico:

- Há de crer que quase desmaiou?

Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.

Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.

Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.

De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.

- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.

Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.

Olhou assombrado, mordendo os beiços.

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

Nota: Como a maioria dos contos de Machado - porque eu não suporto muito os livros -, este é muito bem escrito e envolvente - como um conto deve ser! Tratando de perversidade, mais intenso que crueldade, o narrador me envolve completamente enquanto relata os momentos em que Fortunato se delicia em matando o roedor vagarosamente. Neste conto você pode contar com, quem sabe, duas causas secretas: o fato de Fortunato ser perverso e a paixão de Garcia por Maria Luísa. Mas essas coisas, o narrador quer que a gente descubra sozinho, né!? sem subestimar quem lê.

O Horla - Gui de Maupassant

8 de maio. Que dia lindo! Passei a manhã toda deitado na relva, na frente de casa, sob o enorme plátano que a encobre toda. Gosto desta região, de viver aqui, pois aqui estão velhas recordações, aquelas raízes profundas e delicadas que prendem o homem ao solo onde seus antepassados nasceram e morreram, que o ligam às idéias e costumes do lugar e também, à comida às expressões locais, ao cheiro da terra do próprio ambiente. Adoro a casa onde cresci. Das janelas, vejo o Sena, correndo ao lado do jardim, no outro lado da estrada, quase atravessando minhas terras, o grandioso e extenso Sena, que vai a Rouen e a Havre, apinhado de barcos que passam para lá e para cá. Lá embaixo, a esquerda, está a grande cidade de Rouen, com seus telhados azuis e pontiagudas torres góticas. Estas últimas são incontáveis, largas ou estreitas, dominadas pela espiral da catedral e cheias de sinos que tocam no ar azul de belas manhãs, enviando até minha casa seu doce e distante tinido, canção de metal que a brisa impele em minha direção, ora forte, ora débil, conforme a intensidade do vento. Como a manhã estava agradável! Lá pelas onze horas, uma longa fila de barcos. puxados por um rebocador do tamanho de uma mosca, que mal conseguia resfolegar enquanto soltava espessa fumaça, passou em frente a meu portão. Depois de duas escunas inglesas. Com a bandeira vermelha ondulando ao vento, passou um magnífico barco brasileiro de três mastros, todo branco, muito limpo e lustroso. Saudei-o, sem saber bem por quê, a não ser que a visão do navio deu-me grande prazer. 12 de maio. Tenho estado um pouco febril nos últimos dias e sinto-me doente, ou antes, desalentado. De onde vêm essas misteriosas influências que transformam a alegria em desânimo e a autoconfiança em acanhamento? Poder-se-ia quase dizer que o ar, o ar invisível, está cheio de forças incompreensíveis, cuja presença misteriosa temos de suportar. Acordo com a melhor disposição, sentindo vontade de cantar. Por quê? Desço até a beira da água e, de repente, depois de andar um pouco, volto para casa infeliz, como se uma desgraça estivesse esperando por mim. Por quê? Seria um calafrio que me passou pela pele e abalou meus nervos, deixando-me desanimado? Seria a forma das nuvens, a cor do céu ou dos objetos ao redor de mim tão inconstante, que perturbou meus pensamentos, quando passaram diante de meus olhos? Quem sabe? Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos sem olhar, tudo o que tocamos sem querer, tudo o que manejamos sem sentir, tudo o que encontramos sem ver claramente, tem rápida, surpreendente e inexplicável influência sobre nós e nossos sentidos e, através destes, em nossas idéias e até em nosso coração. Como esse mistério do Invisível é profundo! Não podemos compreendê-lo com nossos sentidos miseráveis, olhos incapazes de perceber o que for muito grande ou muito pequeno, esteja muito perto ou muito longe: nem os habitantes de uma estrela, nem os de uma gota de água. Nem com ouvidos que nos enganam, pois transmitem-nos as vibrações do ar em notas sonoras. São fadas que realizam o milagre de mudar essas vibrações em sons e, por meio dessa metamorfose, fazem surgir a música que transforma o silencioso movimento da natureza... nem com o sentido do olfato, menos aguçado que o de um cão... nem com o sentido do paladar, que mal percebe a idade do vinho! Como seria bom se tivéssemos outros órgãos que realizassem outros milagres a nosso favor! Quantas coisas novas poderíamos descobrir a nossa volta! 16 de maio. Positivamente, estou doente! E estava tão bem no mês passado! Estou com febre, horrivelmente febril, ou melhor, em um estado de debilitação febril, que faz a alma sofrer tanto quanto o corpo. Tenho, continuamente, a horrível sensação de perigo iminente, o receio de alguma futura desgraça ou da morte próxima. Pressentimento que é, sem dúvida, o acesso de uma doença ainda desconhecida, que germina na carne e no sangue. 17 de maio. Acabo de consultar o médico, pois não conseguia mais dormir. Ele disse que o pulso estava rápido, os olhos, dilatados, os nervos, à flor da pele, mas que não encontrou sintomas alarmantes. Devo tomar algumas duchas e brometo de potássio.25 de maio. Nenhuma mudança! Meu estado é realmente estranho. Quando a noite se aproxima, sou invadido por uma incompreensível sensação de intranqüilidade, como se a noite escondesse alguma catástrofe ameaçadora. Janto às pressas e então procuro ler, mas não compreendo as palavras e mal distingo as letras. Caminho de um lado para outro da sala, acabrunhado por uma sensação confusa de medo irresistível, medo do sono e medo da cama.Lá pelas dez horas subo ao quarto. Assim que entro dou duas voltas à chave e ponho a tranca na porta. Tenho medo... de quê? Até há pouco, não tinha medo de nada... Abro os armários e olho embaixo da cama. Escuto... o quê? Não é estranho que uma simples sensação de mal-estar, a má circulação, talvez a irritação de um filamento nervoso, uma ligeira congestão, um pequeno distúrbio no imperfeito e delicado funcionamento de nosso mecanismo vivo, possa transformar o mais despreocupado dos homens em melancólico e em covarde o mais valente? Vou para a cama e espero o sono como um homem que espera o carrasco. Com medo, espero sua chegada, o coração bate e as pernas tremem e todo o corpo tem calafrios debaixo do calor das cobertas, até que adormeço de repente, como alguém que mergulhasse em uma poça de água estagnada a fim de afogar-se. Não o sinto vir como antigamente, este traiçoeiro sono que está perto de mim, vigiando-me e que vai agarrar-me pela cabeça, fechar meus olhos e aniquilar-me. Durmo... bastante tempo... talvez duas ou três horas... Então um sonho... não... um pesadelo apossa-se de mim. Sinto que estou na cama, dormindo... Sinto e sei disso... e sinto também que alguém se aproxima, olha-me, toca-me, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma meu pescoço entre as mãos e o aperta... aperta com toda a força a fim de estrangular-me.Luto, dominado por aquela terrível sensação de impotência que nos paralisa durante os sonhos. Tento gritar... mas não consigo. Quero mover-me... não consigo. Faço os mais violentos esforços, respiro fundo, para tentar virar-me e derrubar essa criatura que está me esmagando, me sufocando... não consigo! E, então, acordo de repente, tremendo e banhado em suor. Acendo uma vela e descubro que estou sozinho. Depois dessa crise, que acontece todas as noites, finalmente caio no sono e durmo em paz até de manhã. 2 de junho. Meu estado de saúde piorou. O que está acontecendo comigo? O brometo não está adiantando de nada e as duchas não produzem resultado. As vezes, a fim de ficar bem cansado, embora já esteja bastante fatigado, vou dar um passeio na floresta de Roumare. Costumava pensar que o ar fresco, leve e suave, impregnado do cheiro de ervas e folhas, instilaria sangue novo em minhas veias e daria nova energia a meu coração. Enveredava por uma larga estrada de caça e então seguia na direção de La Bouille, por uma estreita trilha entre duas fileiras de árvores de uma altura descomunal, que formavam um espesso teto de um verde quase negro entre o céu e eu.Um repentino arrepio percorreu-me a espinha, não de frio, mas um estranho arrepio de agonia. Apressei o passo, apreensivo por estar sozinho na floresta, estupidamente amedrontado sem razão, por causa da completa solidão. De repente pareceu-me estar sendo seguido, que havia alguém nos meus calcanhares, perto, bem perto de mim, próximo o bastante para tocar-me.Voltei-me precipitadamente, mas estava só. Nada vi atrás de mim, exceto a larga trilha reta, vazia, cercada de altas árvores, horrivelmente vazia; à minha frente também se estendia a perder de vista, parecendo sempre a mesma, terrível. Fechei os olhos. Por quê? Comecei a rodar como pião, bem depressa. Quase caí e abri os olhos: as árvores dançavam ao meu redor e a terra girava. Fui obrigado a sentar-me. E, então, que idéia estranha! Não sabia de mais nada. Saí para a direita e voltei à avenida que me conduzira ao centro da floresta. 2 de junho. Passei uma noite horrível. Vou partir por algumas semanas, pois sem dúvida uma viagem me fará bem.2 de julho. Voltei, completamente curado e ainda fiz ótima viagem. Fui ao Mont-Saint-Michel, que ainda não conhecia.Que vista, quando se chega a Avranches como eu, quase no fim do dia! A cidade está sobre uma colina e fui conduzido ao jardim público, nos limites da cidade. Dei um grito de assombro! Uma enorme baía estendia-se diante de mim, até onde os olhos alcançavam, entre duas colinas que a neblina impedia de serem vistas. No meio dessa imensa baía, sob um claro céu dourado, erguia-se uma estranha colina, sombria e pontiaguda, no meio da areia. O sol acabara de se pôr e, no horizonte ainda flamejante, aparecia o contorno do fantástico rochedo com um fantástico monumento em seu cume.Quando raiou o dia, fui para lá. Como na noite anterior, a maré estava baixa e vi diante de mim a admirável abadia, cada vez mais próxima. Depois de andar algumas horas, alcancei a enorme massa de rochas sobre a qual se localiza a cidadezinha, dominada pela grande igreja. Depois de subir a rua íngreme e estreita, entrei no mais admirável edifício gótico já construído para Deus na terra, grande como uma cidade, cheio de salas de teto baixo que parecem enterradas sob abóbadas e de grandiosas galerias sustidas por delicadas colunas. Entrei nessa gigantesca jóia de granito, leve como renda, coberta de torres, com esguios campanários de escadas em caracol, que erguem as estranhas cabeças eriçadas de quimeras, de demônios, de animais fantásticos, com flores monstruosas, para o céu azul durante o dia e negro à noite, e são ligados por arcos finamente entalhados. Quando cheguei ao ponto mais alto da abadia, disse ao monge que me acompanhava: Padre, como devem ser felizes aqui! Ao que respondeu:- Venta muito, monsieur!Começamos a conversar, enquanto assistíamos à subida da maré, que corria pela areia, e parecia cobri-la com uma couraça de aço. O monge contou-me histórias, todas as velhas histórias do lugar, lendas, nada mais que lendas. Uma delas impressionou-me bastante. Os camponeses, aqueles que fazem parte do lugar, dizem que à noite podem-se ouvir vozes nas areias e depois duas cabras balindo, uma com voz forte, a outra com voz fraca. As pessoas incrédulas afirmam que é apenas o grito das aves do mar, que às vezes parecem balidos e, outras, lamentos humanos. Todavia, pescadores que se atrasaram para voltar juram ter encontrado um velho pastor vagando, entre uma maré e outra, pelas areias ao redor da cidadezinha. Traz a cabeça totalmente coberta por um manto e é seguido por um bode com cara de homem e uma cabra com cara de mulher, ambos com longos cabelos brancos, falando sem parar e discutindo em uma língua desconhecida. Calam-se de repente e começam a balir a plenos pulmões. - Acredita nisso? - perguntei ao monge. - Não sei ao certo - retrucou. Continuei: - Se existem outras criaturas na terra além de nós, como ainda não as conhecemos e por que vocês ainda não as viram? Como é que eu ainda não as vi? Respondeu: - Será que vemos a centésima milésima parte do que existe? Olhe aqui, aí está o vento, a maior força que existe na natureza, que derruba homens e edifícios, destrói penhascos e joga grandes navios contra os rochedos, o vento que mata, que assobia, que suspira, que... já o viu? Pode vê-lo? Apesar disso, no entanto, ele existe! Calei-me diante desse raciocínio tão simples. Aquele homem era um filósofo ou, talvez, um tolo. Não saberia dizer qual, exatamente, por isso fiquei quieto. O que dissera, eu já havia pensado muitas vezes. 3 de julho. Dormi mal. Certamente há alguma influência febril aqui, pois meu cocheiro está sofrendo exatamente como eu. Ontem, quando voltei para casa, notei que estava muito pálido e lhe perguntei: - O que tem, Jean? - Não consigo repousar, e as noites devoram meus dias. Desde que partiu, monsieur, parece que estou enfeitiçado. Entretanto, os outros criados estão todos bem. Estou com muito medo de ter outro ataque. 4 de julho. Estou de novo doente, pois meu antigo pesadelo voltou. A noite passada, senti alguém inclinando-se sobre mim e sugando minha vida por entre meus lábios. Sim, estava sugando-a de minha garganta, como uma sanguessuga. Depois, levantou-se, saciado, e acordei, tão cansado, esmagado e fraco que não conseguia mover-me. Se isso continuar por mais alguns dias, viajarei novamente. 5 de julho. Será que estou louco? O que aconteceu a noite passada é tão estranho que perco a cabeça só de pensar! Trancara a porta, como faço todas as noites, e, tendo sede, bebi meio copo de água, notando, por acaso, que a garrafa de água estava cheia até o gargalo. Fui para a cama e passei por um de meus sonhos terríveis, do qual acordei cerca de duas horas depois, com um choque ainda maior. Imagine um homem adormecido sendo assassinado e que acorda com uma faca no pulmão e cuja respiração está arquejante, coberto de sangue, que não consegue mais respirar, está quase morrendo e não compreende... aí está. Tendo recuperado os sentidos, senti sede novamente, por isso acendi uma vela e fui até a mesa onde estava a garrafa de água. Ergui-a e virei-a sobre o copo, mas nada saiu. Estava vazia! Completamente vazia! A princípio não consegui entender absolutamente nada. Mas, de repente, tive uma sensação tão horrível que precisei sentar-me, ou melhor, caí numa cadeira! Saltei da cadeira e olhei à volta, sentei-me de novo, tomado de espanto e medo, em frente à garrafa de cristal. Encarava-a, tentando adivinhar, e minhas mãos tremiam. Alguém bebera a água, mas quem? Eu? Eu, sem dúvida. Só poderia ter sido eu. Nesse caso era sonâmbulo. Vivia, sem saber, a misteriosa vida dupla que nos faz pensar que talvez existam duas criaturas dentro de nós ou que um ser estranho, incompreensível e invisível, anima nosso corpo cativo que o obedece como a nós e mais do que a nós, quando nossa alma está entorpecida. Quem entenderá minha terrível agonia? Quem entenderá a emoção de um homem, são de espírito, completamente acordado, cheio de bom senso, que procura através do cristal de uma jarra um pouco de água que desapareceu enquanto dormia? Fiquei nessa posição, até o dia surgir, sem me arriscar a voltar para a cama. 6 de julho. Estou ficando louco. Mais uma vez todo o conteúdo da jarra de água foi tomado durante a noite... ou melhor, eu o bebi! Mas será que sou eu? Sou eu? Quem poderia ser? Quem? Oh, meu Deus! Estou ficando louco? Quem me salvará? 10 de julho. Acabo de passar por surpreendentes experiências. Decididamente, estou louco! Todavia... A 6 de julho, antes de ir para a cama, coloquei vinho, leite, água, pão e morangos sobre a mesa. Alguém bebeu, eu bebi, toda a água e um pouquinho do leite, mas o vinho, o pão e os morangos não foram tocados. Em 7 de julho, repeti a mesma experiência, com os mesmos resultados, e em 8 de julho não deixei água nem leite, e nada foi tocado. Por fim, 9 de julho, deixei sobre a mesa apenas água e leite, tomando o cuidado de envolver os frascos em musselina branca e de amarrar as tampas. Esfreguei os lábios, a barba e as mãos com grafita e me deitei. Um sono irresistível se apossou de mim, seguido de um terrível despertar. Não me movera, não havia marcas de grafita nos lençóis. Corri até a mesa. A musselina ao redor dos frascos estava intacta. Desamarrei as tampas, tremendo de medo. Toda a água fora bebida, assim como o leite! Meu Deus! Preciso partir imediatamente para Paris. Paris, 12 de julho. Devo ter perdido a cabeça nos últimos dias. Devo ser joguete de minha imaginação exacerbada, a menos que seja realmente sonâmbulo ou que tenha estado sob o poder daquelas influências até agora sem explicação, chamadas sugestões. Em todo caso, meu estado mental chegava às raias da loucura, e vinte e quatro horas em Paris bastaram para restaurar meu equilíbrio. Ontem, depois de resolver alguns negócios e fazer algumas visitas que instilaram em minha alma ar novo e revigorante, terminei a noite no Théâtre-Français. Estava sendo apresentada uma peça de Alexandre Dumas, filho, e sua imaginação ativa e poderosa completou minha cura. É certo que a solidão é perigosa para as mentes ativas. Precisamos de homens que saibam pensar e conversar. Quando ficamos sozinhos por muito tempo, povoamos o espaço com fantasmas. Pelos bulevares, voltei ao hotel muito bem-humorado. No meio dos empurrões da multidão, pensava, não sem uma ponta de ironia, em meus terrores e conjeturas da semana anterior, porque acreditara (sim, acreditara) que uma criatura invisível vivia debaixo de meu teto. Como nosso cérebro é fraco, como se assusta à toa e é induzido a erro por um pequeno fato incompreensível!Em vez de dizer apenas: "Não entendo porque não conheço a causa", imaginamos imediatamente mistérios terríveis e forças sobrenaturais. 14 de julho. Festa da República. Passeei pelas ruas, entusiasmado com os fogos e as bandeiras, como uma criança. Ainda assim, é tolice ficar alegre em data marcada, obedecendo a um decreto do governo. O populacho é um imbecil rebanho de carneiros, de uma paciência estúpida ou com uma revolta feroz. Digam-lhe: "Divirtam-se", e o povo se diverte. Digam-lhe: "Vão lutar com o vizinho", e o povo vai e luta. Digam-lhe: "Votem pelo imperador", e o povo vota pelo imperador. Então digam-lhe: "Votem pela República". e o povo vota pela República. Os que dirigem o povo também são estúpidos, só que, ao invés de obedecer aos homens, obedecem aos princípios que só podem ser estúpidos, estéreis e falsos, pela simples razão de serem princípios, isto é, idéias consideradas como certas e imutáveis, neste mundo, onde não se tem certeza de nada, já que a luz é uma ilusão, já que o barulho é uma ilusão. 16 de julho. Ontem vi uma coisa que me deixou muito preocupado.Jantava em casa de minha prima, Mme. Sable, cujo marido é coronel no 76° Batalhão de Caçadores, em Limoges. Estavam lá duas jovens, uma delas casada com um médico, Dr. Parent, especialista em doenças nervosas e que dá muita atenção às notáveis manifestações causadas pela influência do hipnotismo e da sugestão. Contou-nos com alguns detalhes os maravilhosos resultados obtidos por cientistas ingleses e médicos da escola de Nancy, e os fatos que expôs pareceram-me tão estranhos que me declarei completamente incrédulo. - Estamos prestes a descobrir um dos mais importantes segredos da natureza, isto é, um dos mais importantes segredos nesta terra, pois certamente existem outros, de outra espécie de importância, lá em cima, nas estrelas - disse ele. - Desde que o homem começou a pensar, desde que conseguiu expressar e anotar os pensamentos, tem-se sentido próximo a um mistério inacessível a seus sentidos incompletos e imperfeitos. Procura, então, suprir a ineficiência dos sentidos por meio do intelecto. Enquanto o intelecto manteve-se em um estágio rudimentar, as aparições dos espíritos invisíveis assumiam formas comuns, embora assustadoras. Daí surgiu a crença popular no sobrenatural, as lendas das almas penadas, fadas, gnomos, fantasmas, posso mesmo dizer, a lenda de Deus, pois nossa concepção do artífice-criador, seja qual for a religião que no-la transmitiu, é certamente a mais vulgar, estúpida e inacreditável invenção que já saiu do cérebro amedrontado dos seres humanos. Nada é mais verdadeiro do que o dito de Voltaire: "Deus criou o homem à Sua imagem, mas o homem pagou-lhe na mesma moeda". Entretanto - continuou o Dr. Parent -, há cerca de um século, os homens parecem pressentir algo novo. Mesmer e outros conduziram-nos a uma trilha inesperada e, principalmente nos últimos dois ou três anos, conseguimos resultados realmente surpreendentes. Minha prima, também muito incrédula, sorriu, e o Dr. Parent disse-lhe:- Gostaria que eu tentasse fazê-la dormir, madame?- Sim, certamente.Ela sentou-se em uma poltrona, e ele começou a olhá-la fixamente, como se quisesse encantá-la. Comecei a sentir-me pouco à vontade, com o coração batendo e uma sensação sufocante na garganta. Vi os olhos de Mme. Sable tornarem-se pesados, a boca crispar-se e o peito arfar. Em dez minutos estava dormindo. - Fique atrás dela - disse-me o médico. Sentei-me atrás dela. Pôs um cartão de visitas entre as mãos dela e lhe disse: - Isto é um espelho. O que vê nele?Ela respondeu: - Vejo meu primo.- O que ele está fazendo? - Torcendo o bigode. - E agora? - Está tirando uma fotografia do bolso. - Fotografia de quem?- Dele mesmo. Era verdade. A fotografia fora-me entregue no hotel aquela noite. - Como é a foto? - Ele está em pé, com o chapéu na mão. Enxergava, pois, naquele cartão, naquele pedaço de papelão branco, como se olhasse através de um espelho. As jovens ficaram assustadas e exclamaram: - Chega! Já chega! Mas o médico ordenou a Mme. Sable: - Levante-se amanhã às oito horas, vá visitar seu primo no hotel e peça-lhe cinco mil francos emprestados que seu marido está precisando e que exigirá da senhora quando partir para a próxima viagem. Depois disso, o médico a acordou. Na volta ao hotel, fui meditando sobre essa curiosa sessão. Enchia-me de dúvidas, não quanto à absoluta e sincera boa-fé de minha prima, pois conhecia-a como a uma irmã desde criança, mas quanto a um possível truque da parte do médico. Não teria, talvez, um espelho escondido na mão, mostrando à jovem adormecida, ao mesmo tempo que mostrou o cartão? Os mágicos fazem coisas desse tipo. Cheguei ao hotel e fui para a cama. Esta manhã, mais ou menos às oito e meia, o criado de quarto acordou-me e disse-me: Mme. Sable pede para vê-lo imediatamente, monsieur. - Vesti-me às pressas e fui recebê-la. Sentou-se um tanto preocupada, de olhos baixos e, sem erguer o véu do chapéu, disse-me: - Caro primo, vim pedir-lhe um grande favor. - Que favor, minha prima? - Não quero pedir-lhe, mas tenho de fazê-lo. Preciso urgentemente de cinco mil francos. - O quê? Você? - Sim, eu, ou melhor, meu marido pediu-me para consegui-los. Fiquei tão atônito que gaguejava as respostas. Perguntava-me se ela não estaria zombando de mim, juntamente com o Dr. Parent, se tudo não seria apenas uma bem ensaiada farsa. Olhando-a atentamente, entretanto, todas as minhas dúvidas desapareceram. Estava trêmula de desgosto, pois essa atitude lhe era penosa, e percebi que a garganta lhe travava os soluços. Sabia que era muito rica, por isso continuei: - Como? Seu marido não tem cinco mil francos à disposição? Vamos, pense. Tem certeza de que ele a encarregou de consegui-los? Hesitou alguns segundos, como se fizesse grande esforço de memória e respondeu: - Sim... sim, tenho certeza.- Ele lhe escreveu? Hesitou novamente e refletiu. Percebi a tortura de seus pensamentos. Não sabia. Sabia apenas que tinha de conseguir comigo cinco mil francos emprestados para seu marido. Assim, mentiu: - Sim, escreveu-me. - Rogo-lhe que me diga quando ele o fez. Não falou sobre isso ontem. - Recebi a carta hoje pela manhã. - Pode mostrá-la para mim? - Não... não... continha assuntos íntimos... coisas muito pessoais... Queimei-a. - Então seu marido está endividado? Hesitou mais uma vez e murmurou: - Não sei. Disse-lhe sem cerimônia: - No momento não posso dispor de cinco mil francos, cara prima. Deu um grito, como se estivesse sentindo alguma dor e disse: - Oh, suplico-lhe, rogo-lhe que os consiga para mim... Parecia perturbada e juntava as mãos como a implorar-me! Sua voz mudou de tom. Chorava e gaguejava, inquieta e dominada pela ordem irresistível que recebera. - Por favor, imploro-lhe... se soubesse o que estou sofrendo... preciso do dinheiro hoje. Fiquei com pena: - Você terá daqui a pouco, juro. - Obrigada, obrigada. Agradeço-lhe muito. - Lembra-se do que aconteceu em sua casa ontem à noite? - continuei. - Sim. - Lembra-se de que o Dr. Parent fez você dormir? - Sim. - Muito bem então. Mandou que viesse procurar-me esta manhã e pedisse cinco mil francos emprestados. Neste momento, você está obedecendo a essa sugestão. Refletiu por alguns momentos e respondeu: - Mas é como Se meu marido precisasse deles... Durante uma hora tentei convencê-la, sem conseguir. Quando se foi, procurei o médico. Estava de saída, ouviu-me com um sorriso e disse: - Acredita, agora? - Sim, não tenho outra saída. - Vamos à casa de sua prima. Ela já estava meio adormecida em uma espreguiçadeira, vencida pelo cansaço. O médico tomou-lhe o pulso, observou-a por algum tempo, com a mão erguida em frente aos olhos dela. Sob a irresistível influência de sua força magnética, fechou os olhos. Quando adormeceu, o médico disse:- Seu marido não precisa mais dos cinco mil francos. Deve, portanto, esquecer que os pediu emprestado a seu primo e, se ele tocar no assunto, não entenderá de que se trata.Acordou-a. Peguei a carteira e disse: - Aqui está o que me pediu esta manhã, cara prima. Ficou tão surpresa, que não me atrevi a insistir. Contudo, tentei fazê-la lembrar-se do que acontecera. Negou energicamente, achando que me divertia às suas custas e, no fim, quase perdeu a paciência. Pronto! Acabo de chegar e não consegui almoçar, pois essa experiência deixou-me completamente abalado. 19 de julho. As pessoas a quem contei essa aventura riram-se de mim. Não sei mais o que pensar. Diz o sábio: "Pode ser!". 21 de julho. Jantei em Bougival e passei a noite em um baile de barqueiros. Decididamente, tudo depende do local e do ambiente. Seria muita tolice acreditar no sobrenatural quando se está na Île de la Grenouilliére... mas, e no Mont-Saint-Michel? ... e na Índia? Somos terrivelmente influenciados pelo que nos rodeia. Na semana que vem, voltarei para casa. 30 de julho. Voltei ontem para casa. Tudo vai bem. 2 de agosto. Nada de novo. O tempo está esplêndido e passo os dias a olhar o Sena.4 de agosto. Desavenças entre os criados. Alegam que à noite os copos são quebrados nos armários. O criado acusa o cozinheiro, que acusa a costureira, que acusa os outros dois. Quem é o culpado? Só alguém muito esperto poderia dizer. 6 de agosto. Desta vez não estou louco. Eu vi... eu vi... não posso mais duvidar... eu o vi! As duas horas, em pleno sol, passeava entre as roseiras... entre as rosas de outono que começam a cair. Quando parei para olhar um géant de bataille, com três rosas esplêndidas, vi perfeitamente a haste de uma das rosas perto de mim inclinar-se, como se uma mão invisível a forçasse a quebrar-se, como se estivesse sendo colhida! Então, a flor ergueu-se, seguindo a curva que a mão teria feito ao levá-la até a boca e permaneceu suspensa no ar, sozinha e imóvel, terrível mancha vermelha, quase diante de meus olhos. Em desespero, corri para agarrã4a. Nada achei, ela desaparecera! Fiquei com muita raiva de mim mesmo, pois um homem sério e razoável não deveria ter tais alucinações. Mas seria uma alucinação? Voltei-me para olhar a haste e encontrei-a imediatamente, na roseira, quebrada de pouco, entre duas rosas que continuavam no galho. Voltei para casa, bastante perturbado, pois estou certo agora, como certo estou da alternância entre o dia e a noite, de que existe perto de mim uma criatura invisível, que vive a leite e água, pode tocar objetos, pegá-los e mudá-los de lugar, sendo, portanto, dotado de natureza material, embora seja imperceptível a nossos sentidos. Vive como eu, debaixo de meu teto... 7 de agosto. Dormi tranqüilamente. Ele bebeu a água da garrafa, mas não perturbou meu sono. Pergunto a mim mesmo se não estarei louco. Agora mesmo, passeando ao sol à beira do rio, tive dúvidas quanto a minha sanidade. Não dúvidas vagas como as que tive ultimamente, mas dúvidas absolutas e precisas. Já vi gente louca e conheci alguns loucos que são inteligentes, lúcidos, até mesmo perspicazes em tudo, exceto em um ponto. Falavam pronta, clara e profundamente sobre todos os assuntos, até que, de repente, a mente ia de encontro aos escolhos de sua loucura, partia-se ali e se dispersava e debatia naquele mar furioso e terrível, cheio de ondas agitadas, de neblina e pés-de-vento, que se chama Loucura. Com certeza eu deveria pensar que estava louco, completamente louco, se não estivesse consciente, não conhecesse perfeitamente meu estado, não o analisasse com a mais completa lucidez. De fato, devo ser apenas um homem racional, sofrendo uma alucinação. Deve ter surgido em minha mente algum distúrbio desconhecido, um dentre aqueles que os fisiólogos modernos tentam observar e confirmar. Esse distúrbio deve ter causado profunda brecha na minha mente e na seqüência lógica das idéias. Fenômenos semelhantes acontecem nos sonhos que nos levam a imaginar coisas irreais, sem nos causar surpresa, porque o aparelho de verificação, nosso órgão de controle está adormecido, enquanto a faculdade da imaginação está acordada e ativa. Não é possível que uma das imperceptíveis unidades do teclado cerebral tenha ficado paralisada em mim? Alguns homens perdem a lembrança de nomes próprios, de verbos ou números, os simplesmente de datas, como conseqüência de algum acidente. A localização de todas as variações de pensamento já está estabelecida atualmente. Por que, então, seria surpreendente se minha faculdade de controlar a irrealidade de algumas alucinações estivesse temporariamente adormecida? Pensava em tudo isso, enquanto andava pela beira da água. O sol brilhava intensamente sobre o rio e tornava a terra agradável, enchendo-me de amor pela vida, pelas andorinhas cuja agilidade sempre encanta meus olhos, pelas plantas à beira do rio, de cujas folhas o farfalhar é um prazer aos ouvidos. Aos poucos, entretanto, uma indefinível sensação de mal-estar se apossava de mim. Parecia que uma força desconhecida estava me entorpecendo e detendo, impedindo-me de seguir adiante e chamando-me de volta. Senti aquele penoso desejo de voltar que nos oprime quando deixamos um doente querido em casa e somos tomados por um pressentimento de que piorou. Assim, voltei contra a minha vontade, certo de que encontraria alguma má noticia à espera, talvez uma carta ou telegrama. Não havia nada, e fiquei mais surpreso e inquieto do que se tivesse tido outra visão fantástica. 8 de agosto. Ontem, passei uma noite horrível. Não se mostra mais, porém, sinto-o perto de mim vigiando-me, olhando-me, penetrando-me, dominando-me, e mais temível quando se oculta dessa forma do que se manifestasse sua presença constante e invisível através de fenômenos sobrenaturais. Entretanto, consegui dormir. 1 de agosto. Nada, mas estou com medo. 10 de agosto. Nada. O que acontecerá amanhã? 11 de agosto. Nada ainda. Não consigo ficar em casa com este medo pairando sobre mim e estes pensamentos na cabeça. Vou embora. 12 de agosto. Dez horas da noite. O dia todo tentei partir e não consegui. Gostaria de realizar este simples e fácil ato de liberdade - sair -, entrar em meu carro e partir para Rouen... e não consigo. Por que razão? 13 de agosto. Quando somos atacados por certas doenças, todas as molas de nosso corpo parecem estar quebradas, todas as nossas energias, destruídas, todos os nossos músculos, relaxados. Nossos ossos amolecem como carne, e o sangue vira água. Estou tendo essas sensações em minha existência moral de modo estranho e angustioso. Não tenho mais força, coragem, autocontrole, nem mesmo o poder de exercer minha vontade. Não tenho mais vontade de nada, mas alguém a tem por mim e eu lhe obedeço. 14 de agosto. Estou perdido. Alguém possui minha alma e a domina. Alguém ordena todos os meus atos, todos os meus movimentos, todos os meus pensamentos. Não sou mais nada, exceto espectador escravizado e amedrontado de tudo o que faço. Quero sair, não posso. Ele não quer, e assim permaneço, trêmulo e perplexo, na poltrona onde ele me mantém sentado. Desejo apenas levantar-me e me animar, mas não posso! Estou preso à cadeira, e esta adere ao chão de tal maneira que não existe força capaz de mover-nos. De repente, sinto que devo, preciso ir ao fundo do quintal colher morangos e comê-los, e lá vou eu. Colho os morangos e como-os! Meu Deus! Meus Deus! Deus existe? Se existe, libertai-me! Salvai-me! Socorrei-me! Perdão! Piedade! Misericórdia! Salvai-me! Quanto sofrimento! Que tormento! Que horror! 15 de agosto. Então era desse modo que minha pobre prima se encontrava, e era controlada, quando veio pedir-me os cinco mil francos emprestados. Estava sob o poder de uma estranha vontade que entrara dentro dela, como outra alma, como outra alma parasita e dominadora. Será que o mundo está para acabar? Mas quem é ele, este ser invisível que me governa? Este ser irreconhecível, este pirata de raça sobrenatural? Existem, então, seres invisíveis! Por que não se manifestaram desde o começo do mundo, precisamente como fazem comigo? Nunca li nada parecido com o que acontece em minha casa. Oh, se pudesse deixá-la, se pudesse ir embora, fugir e nunca mais voltar! Estaria salvo, mas não posso. 16 de agosto. Hoje consegui escapar por duas horas, como um prisioneiro que, por acaso, encontra a porta da masmorra aberta. De repente, senti que estava livre e que ele estava muito longe; assim, dei ordens para atrelar os cavalos o mais depressa possível e partir para Rouen. Como é agradável conseguir dizer a um homem que nos obedece: - Vá... a Rouen! Mandei parar em frente à biblioteca e pedi que me emprestassem o tratado do Dr. Hermann Herestauss sobre os habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno. Ao voltar para o coche, pretendia dizer: "Para a estação!", em vez disso gritei... não disse, gritei, tão alto que os passantes voltaram-se: - Para casa! - e caí para trás, na almofada do carro, tomado de angústia. Ele voltara a me encontrar e retomara a posse de mim. 17 de agosto. Ah, que noite! Que noite! E contudo parece-me que devia alegrar-me. Li até a uma da manhã! Herestauss, doutor em Filosofia e Teogonia, escreveu a história da manifestação todos esses seres invisíveis que pairam em volta dos homens ou com quem os homens sonham. Descreve sua origem, domínio, poder, mas nenhum se assemelha ao que me assedia. Pode-se dizer que, desde que começou a pensar, o homem pressente um novo ser, mais forte, seu sucessor neste novo mundo e que, sentindo sua presença e não conseguindo prever a natureza desse mestre, criou toda uma raça de seres ocultos, de vagos fantasmas, nascidos do medo. Depois de ler até a uma da manhã, sentei-me à janela aberta, a fim de refrescar a fronte e os pensamentos, no ar calmo da noite agradável e quente. Como teria apreciado semelhante noite em outros tempos! Não havia lua, mas as estrelas lançavam sua luz no céu escuro. Quem habita esses mundos? Que formas, que seres vivos, que animais existem lá em cima? O que sabem os pensadores naqueles mundos distantes que não sabemos? O que podem fazer, e nós não? O que vêem que não conhecemos? Será que um deles, algum dia, atravessando o espaço, aparecerá na Terra para conquistá-la, exatamente como os escandinavos cruzaram o mar a fim de conquistar nações mais fracas do que eles? Somos tão fracos, tão indefesos, tão ignorantes, tão pequenos, nós que vivemos nesta partícula de lama que gira em uma gota de água! Adormeci assim, sonhando no fresco ar da noite, e depois de dormir cerca de três quartos de hora abri os olhos sem me mexer, acordado por não sei que confusa e estranha sensação. A princípio não vi nada, mas de repente tive a impressão de que uma página do livro que ficara aberto sobre a mesa virou-se sozinha. Nenhuma aragem passara pela janela, por isso, surpreso, esperei. Depois de uns quatro minutos, eu vi, eu vi, sim, vi com meus próprios olhos, outra página levantar-se e cair sobre as outras, como se um dedo a tivesse virado. A poltrona estava vazia, parecia vazia, mas sabia que ele estava lá. Sentado em meu lugar e lendo. Com um pulo, o pulo furioso de um animal selvagem enraivecido, que salta sobre o domador, atravessei a sala para agarrá-lo, estrangulá-lo, matá-lo! Porém, antes que pudesse alcançá-la, a cadeira virou-se como se alguém tivesse fugido de mim... a mesa balançou, a lâmpada caiu e se apagou e a janela fechou-se, como se um ladrão tivesse sido surpreendido e fugido noite afora, fechando-a atrás de si.Então ele fugira. Tivera medo, medo de mim! Mas... mas... amanhã... ou mais tarde... algum dia... conseguirei agarrá-lo e esmagá-lo contra o chão! Às vezes os cães não mordem e estraçalham o dono?18 de agosto. Estive pensando o dia todo. Sim, vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, realizar seus desejos, mostrar-me humilde, submisso, covarde. Ele é o mais forte, mas há de chegar a hora... 19 de agosto. Eu sei... eu sei... eu sei tudo! Acabei de ler o seguinte, na Revue du Monde Scientifique: "Curiosa noticia chega-nos do Rio de Janeiro. Loucura, uma epidemia de loucura, comparável à loucura contagiosa que atacou a população da Europa, na Idade Média, está, neste momento, grassando na província de São Paulo. Os habitantes, aterrorizados, abandonam suas casas, dizendo que estão sendo perseguidos, possuídos, dominados como gado humano por seres invisíveis, mas tangíveis, uma espécie de vampiro, que se alimenta da vida deles enquanto estão dormindo, e que, além disso, bebe água e leite, sem aparentemente tocar nenhum outro alimento. "O professor Pedro Henrique, acompanhado por vários médicos, foi à província de São Paulo, a fim de estudar a origem e as manifestações dessa surpreendente loucura, no local, e propor ao imperador as medidas que lhe pareçam mais cabíveis para fazer com que a população recupere a razão." Ah! ah! lembro-me agora daquele belo navio brasileiro de três mastros que passou em frente às minhas janelas, subindo o Sena no dia 8 de maio passado! Achei que parecia tão formoso, tão branco e brilhante! Aquele Ente estava a bordo, vindo de lá, onde sua raça se originou. E me viu! Viu minha casa, também branca, e saltou do navio para terra. Oh, céu misericordioso! Agora sei, posso adivinhar. O reino do homem acabou, e ele chegou. Ele, que era temido pelo homem primitivo, ele, que padres preocupados exorcizavam, que feiticeiras evocavam em noites escuras, sem tê-lo visto aparecer, a quem a imaginação dos senhores provisórios do mundo emprestavam todas as monstruosas ou graciosas formas de gnomos, espíritos, gênios, fadas e almas familiares. Depois dos conceitos imprecisos baseados no medo primitivo, homens mais sensíveis anteviram-no mais claramente. Mesmer o pressentiu, e, há dez anos, médicos descobriram, com precisão, a natureza de sua força, antes mesmo que ele a exercesse. Divertiram-se com essa nova arma do Senhor, o domínio de uma vontade misteriosa sobre a alma humana que se tornara escrava. Chamaram-no de magnetismo, hipnotismo, sugestão... sei lá! Vejo-os divertindo-se, como crianças imprudentes, com essa força terrível! Ai de nós! Ai dos homens! Ele chegou, o... o... como se chama... o... Imagino que está gritando seu nome e não consigo ouvi-lo... o... sim... está gritando... estou ouvindo... Não consigo... Ele o repete... o... Horla... ou,... o Horla... ele chegou! Ah! O abutre devorou a pomba, o lobo devorou o cordeiro, o leão devorou o búfalo de chifres pontiagudos. O homem matou o leão com a flecha, com a espada, com a pólvora. Mas o Horla fará do homem o que fizemos do cavalo e do boi: objeto, escravo e alimento, só porque é sua vontade. Ai de nós!Contudo, às vezes, o animal revolta-se e mata o homem que o subjugou. Eu também gostaria de... serei capaz de... mas preciso conhecê-lo, tocá-lo, vê-lo! Os cientistas afirmam que os olhos dos animais, sendo diferentes dos nossos, não distinguem os objetos da mesma forma que nós. E meus olhos não conseguem distinguir esse recém-chegado que me oprime. Por quê? Agora me lembro das palavras do monge do Mont-Saint-Michel: "Será que vemos a centésima milionésima parte do que existe? Veja, lá está o vento, a maior força da natureza, que derruba homens e edifícios, desenraiza árvores, faz o mar erguer-se como montanhas de água, destrói penhascos e joga grandes navios contra as ondas. O vento que mata, que assobia, que suspira, que ruge... já o viu? Consegue vê-lo? Contudo, ele existe". E continuei a pensar: "Meus olhos são tão fracos, tão imperfeitos, que nem mesmo distinguem corpos sólidos, se estes forem transparentes como o vidro! Se não houver um papel prateado atrás de um vidro em meu caminho, colidirei com ele, da mesma forma que um pássaro, voando para dentro de uma sala, bate a cabeça contra a vidraça". Existem mil coisas que enganam o homem e o induzem ao erro. Por que haveria de ser surpreendente o fato de não conseguir perceber um corpo desconhecido que a luz consegue atravessar? Um novo ser! Por que não? Com certeza estava destinado a vir! Por que deveríamos ser os últimos? Não o distinguimos mais do que todos os outros criados antes de nós! Isso acontece porque sua natureza é mais perfeita, tem o corpo mais apurado e mais bem acabado que o nosso, tão fraco, de construção tão desajeitada, atravancado de órgãos que estão sempre cansados, sempre tenso como um mecanismo muito complicado, que vive como planta e como animal, nutrindo-se com dificuldade de ar, ervas e carne, máquina animal vitima de doenças, má-formação, decadência; arquejante, mal-regulado, simples e extravagante, originalmente malfeito, obra ao mesmo tempo grosseira e delicada, esboço irregular de uma criatura que poderia tornar-se inteligente e grandiosa.Somos apenas alguns, tão poucos neste mundo, da ostra ao homem. Por que não poderîa haver mais um, uma vez passada a época que separa as sucessivas aparições de todas as espécies diferentes? Por que não mais um? Por que não, também, outras árvores com flores imensas e esplêndidas, perfumando regiões inteiras? Por que não outros elementos além do fogo, ar, terra e água? Existem quatro, só quatro, amas-secas de seres diferentes! Que pena! Por que não existem quarenta, quatrocentos, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho e miserável! Produzido de má vontade, construído irregularmente, inabilmente feito! Ah, o elefante e o hipopótamo, que graça! E o camelo, que elegância! Mas a borboleta, dirão, uma flor voadora? Sonho com uma tão grande como cem universos, com asas cuja forma, beleza, e movimentos não consigo nem mesmo exprimir. Porém a vejo... esvoaça de uma estrela a outra, refrescando-as e perfumando-as com a aragem leve e harmoniosa de seu vôo! E as pessoas lá em cima olham-na quando passa em um êxtase de prazer! O que está acontecendo comigo? É ele, o Horla, que me persegue e que me faz pensar essas tolices! Está dentro de mim, está se transformando em minha alma. Pretendo matá-lo! 19 de agosto. Vou matá-lo. Eu o vi! Ontem, sentei-me à mesa e fingi escrever com bastante atenção. Sabia muito bem que viria rondar-me, bem perto de mim, tão perto que, talvez, conseguisse, tocá-lo, agarrá-lo. E então... então eu conseguiria a força do desespero. Teria as mãos, os joelhos, o peito, a fronte, os dentes para estrangulá-lo, esmagá-lo, morde-lo, fazê-lo em pedaços. E o aguardava com todos os sentidos alerta.Acendera as duas lâmpadas e as oito velas de cera sobre a lareira, como se com toda essa luz pudesse descobri-lo. À minha frente, estava a cama, a velha cama de colunas de carvalho; à direita, a lareira; à esquerda, a porta, fechada cuidadosamente, depois que a deixei aberta algum tempo, a fim de atrai-lo; atrás de mim, estava o guarda-roupa, muito alto, com o espelho diante do qual fazia a barba e me vestia todos os dias e no qual costumava ver-me de relance, da cabeça aos pés, toda vez que passava diante dele. Fingia estar escrevendo a fim de enganá-lo, pois ele também me vigiava e, de repente, senti... tinha certeza de que estava lendo por cima de meu ombro, que estava lá, roçando minha orelha.Levantei-me com as mãos estendidas e virei-me tão depressa que quase caí. Quê! Bem? Estava claro como se fosse o meio-dia, mas não conseguia ver meu reflexo no espelho! Estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Só que minha imagem não estava refletida nele... E eu, eu estava na frente do espelho! Examinei o grande e claro espelho, de cima a baixo, olhei-o com olhos vacilantes. Não ousei aproximar-me, não me arrisquei a fazer um movimento sequer, sentindo que ele estava ali, mas que novamente me escapara, ele cujo corpo imperceptível absorvera meu reflexo.Como eu estava amedrontado! E então, subitamente, comecei a ver-me através de uma névoa no fundo do espelho, uma névoa que parecia um lençol de água. Parecia-me que a água escorria mais clara a todo momento. Era como o fim de um eclipse. O que quer que ocultasse minha imagem não parecia possuir contornos definidos, mas uma espécie de transparência opaca que ia clareando aos poucos.Afinal, consegui distinguir meu reflexo completamente, como acontece todos os dias quando me olho no espelho. Eu o vira! O horror dessa visão ficou comigo e, mesmo agora, faz-me tremer. 20 de agosto. Como poderia matá-lo, se não consegui agarrá-lo? Veneno? Mas ele me veria misturá-lo à água, e então teria nosso veneno algum efeito em seu corpo impalpável? Não... não há dúvida sobre isso... Então... então... 21 de agosto. Chamei um ferreiro de Rouen e encomendei venezianas de ferro para meu quarto, iguais às que alguns hotéis de Paris têm no andar térreo, para impedir a entrada de ladrões, e ele também vai fazer-me uma porta de ferro. Estou parecendo covarde, mas não me importo! 10 de setembro. Rouen, Hotel Continental. Está feito... está feito... mas será que está morto? O que vi deixou-me a mente completamente abalada. Bem, ontem, depois que o serralheiro colocou as venezianas e a porta de ferro, deixei tudo aberto até a meia-noite, embora estivesse esfriando. De repente, senti que ele estava lá, e uma alegria, uma louca alegria apossou-se de mim. Levantei-me silenciosamente e andei algum tempo de um lado para outro, para que ele não suspeitasse de nada. Tirei as botas e calcei os chinelos despreocupadamente, fechei as venezianas de ferro, fui até a porta, tranquei-a rapidamente com um cadeado e guardei a chave no bolso. Percebi de súbito que ele se movia nervosamente a minha volta, que, por sua vez, estava amedrontado e ordenava-me que o deixasse sair. Quase lhe obedeci. Em vez disso, entretanto, com as costas contra a porta, abri-a apenas o suficiente para poder sair de costas e, como sou muito alto toquei a esquadria com a cabeça. Estava certo de que ele não tinha conseguido escapar e deixei-o fechado sozinho, completamente sozinho. Que felicidade! Conseguira prende-lo. Então corri para baixo, para a sala de visitas que ficava embaixo do meu quarto. Peguei os dois lampiões e despejei todo o querosene no tapete, na mobília, em toda parte. Toquei fogo e fugi, depois de trancar cuidadosamente a porta. Escondi-me no fundo do quintal, em uma moita de louros. Como parecia demorar! Tudo estava escuro, silencioso, imóvel, sem a mais leve brisa, sem uma estrela, somente camadas de nuvens, que não se podia ver, mas que pesavam, oh, como pesavam, em minha alma. Fiquei esperando, olhando para a casa. Como demorava! Começava a pensar que o fogo se apagara sozinho, ou que ele o extinguira, quando uma das janelas do andar térreo cedeu sob a violência das chamas e uma longa, suave, acariciante e rubra língua de fogo subiu pela parede branca e envolveu-a até o telhado. O clarão atingiu as árvores, os galhos e as folhas, e um arrepio de medo também os invadiu! Os pássaros acordaram, um cachorro começou a uivar, e pareceu-me que o dia estava nascendo! Quase imediatamente, duas outras janelas se arrebentaram e vi que toda a parte de baixo da casa era apenas uma fornalha incandescente. Um grito, horrível, estridente, de partir o coração, um grito de mulher, soou dentro da noite, e duas janelas do sótão se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi os rostos apavorados e os braços agitando-se freneticamente. Tomado de pavor, comecei a correr para a cidade, gritando: - Socorro! Socorro! Fogo! Fogo! - Encontrei algumas pessoas que já vinham correndo e voltei com elas. Nessas alturas, a casa não era mais que uma horrível e imponente pira funerária, monstruosa pira funerária que iluminava tudo, pira funerária onde homens ardiam, e ele também estava sendo queimado. Ele, ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo Senhor, o Horla! De repente, o telhado desabou entre as paredes, e um vulcão de chamas voou até o céu. Pelas janelas abertas naquela fornalha, vi as chamas disparando e pensei que ele estivesse lá, naquele forno, morto. Morto? Talvez? eu corpo? Não seria seu corpo, transparente, indestrutível pelos meios que conseguiam matar os nossos? E se ele não estivesse morto? Talvez só o tempo tenha poder sobre esse Ser Invisível e Terrível. Qual a razão desse corpo transparente e irreconhecível, esse corpo pertencente a um espírito, se também tem de temer doenças, fraquezas e ruína prematura?Ruína prematura? Todo o terror humano tem aí sua origem! Depois do homem, o Horla. Depois daquele que pode morrer todo dia, a toda hora, a todo momento, de qualquer acidente, veio o que morreria apenas na hora, no dia e no minuto apropriado, porque tocara os limites de sua própria existência! Não... não... sem dúvida... não está morto... Então... então... acho que terei de me matar!